Acreditamos que ninguém em sã consciência (coisa um tanto difícil de achar, sabemos) negaria as condições únicas de um útero para o feto. Com todo o conforto, casa, comida e roupa lavada garantidas, sem ter que assistir a programas de auditório, sem ter que se preocupar se a mãe terá lugar para sentar na condução lotada – convenhamos, uma vida boa! Quem em sã consciência (feto já teria consciência?) rejeitaria uma vida dessas?
Mas, essa condição única chamou a atenção de nossos pesquisadores. Que a vida uterina é boa, ninguém nega, mas alguém já pensou – pensaram nossos pesquisadores – que essa vida toda de nove meses em média se passa totalmente no escuro? Totalmente sem luz? Ato contínuo, pensaram eles o seguinte: quando ocorre o parto, o que se diz: que a mãe deu a luz ou deu à luz? Mais que uma questão de interesse de gramáticos esclerosados, a existência da crase faz toda diferença. No primeiro caso – dar a luz – significa considerar o pimpolho querido como “a” própria luz, o que, com todo respeito, é um pouco demais; o segundo caso – dar à luz -, parece ser mais coerente. Assim, a parturiente estaria dando seu filho para a luz, quer dizer, dando a ele a possibilidade de conhecer tudo o que a luz possibilita, mas também tudo o que ela exige.
Nossos pesquisadores ficaram, no entanto, incomodados com uma situação. Vamos supor – consideraram eles – que pudéssemos perguntar para o bebê, afinal, o protagonista dessa história toda, se ele gostaria de permanecer para sempre dentro do útero ou se gostaria de se aventurar sob a luz do sol. Para ele poder decidir, a ele seria apresentado tudo o que ocorre debaixo da luz do sol, tudo o que a luz, sendo luz, não poderia dizer que não aconteceu ou que não existiu. Então, o bebê veria todo tipo de cena que ocorre sob a luz do sol, ou por causa dela ou, no mínimo, com sua complacência: rios limpos e rios poluídos; gente nascendo (como ele) e gente morrendo; gente sendo ajudada e gente sendo prejudicada; bondade e maldade; beleza e feiúra; atos gradiosos e atos mesquinhos; liberdade e escravidão; atos heróicos e atos covardes; amor e ódio; altivez e mesquinharia; sanidade e loucura; generosidade e roubalheira. Assim, ela veria de tudo que acontecesse à luz do dia e da tarde.
Como saber que decisão ele tomaria? Como saber se ele preferiria uma segurança totalmente às escuras ou se preferiria a luz, suas dualidades e seus desafios?
Reprodução permitida, desde que citada a fonte. Caso contrário vamos soltar os cachorros em cima do infrator. ;-)
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