Ah aquelas óbvias muito difíceis de entender!
Porque, em um primeiro momento, nada pode parecer mais óbvio do que a vida, essa do dia-a-dia, essa que conhecemos (mesmo porque não temos outra), essa vida de pagar contas o tempo inteiro; essa de boletos atrasados todo mês (e para não cancelarem um serviço, fazemos um rodízio entre as contas, para pagarmos mês sim-mês não); esse de desamores e aflições; essa vida de conversas infindáveis com o colega-traíra do escritório; essa de mais-uma reunião inútil que o chefe convoca toda semana, para se falar de tudo, sobretudo de coisa nenhuma; essa vida de dar uma de surdo quando falam alguma coisa que não queremos ouvir; essa vida de tolerar o sem-noção do cunhado, que só vem te visitar para tomar sua cerveja gelada e comer tremoço temperado com azeite e orégano; essa vida de trânsito engarrafado todos os dias; essa vida da promoção que você até merecia, mas que seu chefe passou para a amante dele, aquela vadia; essa vida de ter que ouvir música de péssimo gosto em alto e (péssimo) som; essa vida de ter que almoçar no lugar mais barato porque tem uma comida de gosto pra lá de duvidoso, mas, como é de um parente do seu supervisor, sai mais em conta (só tem que aguentar a azia a tarde toda); essa vida de insuportáveis programas de auditório, de intoleráveis redes sociais, de inassistíveis séries que, para maratonar só mesmo com uma tonelada de pipoca besuntada com margarina – mesmo porque, se não assistir, você fica sem assunto amanhã na seção em que todos só falam dessa série (e se não assistir, prepare-se: o assunto será você); essa vida de respirar ar em quem tem de tudo, se vacilar até oxigênio (porque o que não falta é gás carbônico e micro-plástico); essa vida de calor a cada ano pelo menos um grau mais quente; essa vida de ouvido de penico (o nosso, de tanto ouvir tanta bobagem); essa vida de gentileza de geléia. Ao lermos a primeira redação desse Aforismo, solicitamos que nossos pesquisadores parassem por aqui, sabe como é, para não deprimir muito os despreparados. Mas, se não compactuássemos com tudo isso da nossa vida (que é a que temos), ou com quase tudo isso da nossa vida (que é a que temos), iríamos viver onde? No meio do mato? E seríamos tiranizados por quem? E a quem iríamos tiranizar?
Leitor, reconheça: ainda bem que você tem o Canis&Circensis, certo?
Reprodução permitida, desde que citada a fonte. Caso contrário vamos soltar os cachorros em cima do infrator. ;-)
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